Crítica l O mundo de Aisha – A revolução silenciosa das mulheres no Iêmen

Em um mundo ainda repleto de machismo e misoginia, precisamos falar mais sobre as mulheres e suas vivências. A proposta de trazer temáticas sociais para o formato de história em quadrinho é uma maneira de mostrar uma realidade áspera – de forma lúdica – para o público jovem e aproximá-lo mais de questões sociais relevantes do cotidiano. E nesse cenário, a Editora Nemo tem feito um excelente trabalho.

A graphic novel de Ugo Bertotti, cartunista italiano, traz relatos das histórias contadas pela fotojornalista Agnes Montonari em uma viagem que fez ao Iêmen acompanhando seu marido em uma missão para o Comitê Internacional da Cruz Vermelha.  Nessa viagem Agnes conversou com mais de 30  mulheres iemenitas, acompanhou o cotidiano delas, e sobretudo, fez muitos registros por meio de fotos – as quais teremos o privilégio de encontrar no livro.

Em uma espécie de posfácio, a fotojornalista ressalta:

Caminhando pelas ruazinhas estreitas da cidade velha de Saana tem-se a impressão  de cruzar pássaros misteriosos, sombras negras, que só se distinguem pelo talhe. E como essas mulheres não mostram o rosto, elemento essencial para o conhecimento e o reconhecimento em nossas sociedades ocidentais, logo se conclui que elas não existem.

No final  de minha estadia no Iêmen, o véu nem existia mais pra mim. Embora continuasse a cobrir seus rostos, tornara-se transparente. Eu sabia que por trás dele havia uma mulher feita de carne, inteligência e emoções.

“O mundo de Aisha” já mostra história na própria capa. Em tons sombrios, mesclados entre o preto e o cinza, vemos apenas os olhos de um mulher ou menina (ainda não sabemos).  A capa do livro é grave e convidativa na medida certa do conteúdo que se propõe a trazer.

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O livro vai nos transportar para um ambiente muito hostil para as mulheres: o Iêmen. Estamos falando de um país que tem uma política clara de subjugação feminina, desigualdade de gênero e objetificação sexual da mulher e não é surpresa que o país tenha uma das mais altas taxas de mortalidade feminina. Ambientados? Então, vamos começar!

Abre-se o livro. Preto e branco. Sim, todos os traços são pretos. Não espere cor nessas histórias.

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O livro se estrutura por “capítulos” que recebem os nomes das suas protagonistas e se debruçam sobre suas histórias. Não são histórias fictícias, são histórias reais vividas por mulheres reais. Em muitos momentos, o livro vai nos mostrar fotos verdadeiras embaralhadas em meio aos quadrinhos e desenhos. As mulheres iemenitas, podemos olhá-las, mesmo cobertas pela preto do pano,e  vê-las como reais, não apenas desenho de tinta sobre o papel.

Conheceremos as histórias de Sabiha, Hamedda, Aisha, Houssen, Ghada, Ouda e Fatin. Dessas mulheres que mostram apenas os olhos, enxergamos histórias de estupro conjugal, casamento na adolescência, agressões domésticas, morte, desprezo social e misoginia. São mulheres invisíveis, cobertas em seu corpo pelo niqab (véu negro que cobre o rosto deixando apenas os olhos descobertos), cobertas em seus direitos pela tradição iemenita. São histórias fortes que nos mostram agruras difíceis de ser imaginar. Não é incomum que entre uma história e outra você precise de um tempo pra digerir o que leu.

Mas, o livro não traz apenas derrotas.  O autor nos brindou com histórias de superação em meio ao insuperável. Vamos encontrar em Hamedda a força para não desistir e a resiliência para não ceder frente às opressões. Aisha, protagonista cujo nome deu título a obra, mostra que a luta pelo acesso a educação e pelo mercado de trabalho não é quimérica. Ouda nos ensina que ser divorciada em uma sociedade radicalmente machista é muito mais difícil do que parece, mas não é impossível.

Apesar da dor e sofrimento concentrados em cada letra dessas histórias, não podemos dizer que não há beleza nelas, não é mesmo? A beleza da luta e da resistência diante de padrões tão massacrantes em relação a mulher é singelamente apreciável. Afinal, o livro nos fala de uma revolução silenciosa.

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É sem dúvidas uma leitura densa, crítica e reflexiva. Ler “O mundo de Aisha” é deixar cair o véu que nos impede de ver o sofrimento de muitas mulheres ao redor do mundo. Ler “O mundo de Aisha” é permitir uma mudança de visão que te torne não mais um leitora/leitor, mas autora/autor de histórias de lutas e mudanças (como essas).

Dados técnicos:
Editora Nemo
Páginas: 135
Valor original: R$ 39,90

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Pedro Cardoso

Editor do Capacitor, apaixonado por games, filmes e literatura sci-fi/fantástica.

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