Resenha | Minha coisa favorita é Monstro

Existem obras que transcendem a ideia de gênero. Outras, conseguem mesclar formatos. Há aquelas que primam por um roteiro impecável. Já outras trazem uma arte que impressiona. Minha coisa favorita é Monstro consegue ter todos esses atributos.

A premissa, talvez muito mais pelo título, é de que essa é uma história de terror. De fato, há alguns elementos do gênero ao longo da história. A ideia até ganha força com as diversas artes que remetem à capas de revistas de terror, clássicas de algumas décadas.

Contudo, não se trata de uma história de terror em sua essência. Há certamente bastante suspense. Mas se tivéssemos que escolher um gênero para definir este seria drama. E dos bons.

Quem narra a história é a personagem Karen. Ela é uma menina que tem 10 anos de idade e mora em Chicago nos anos 60. Ela ama histórias de terror e arte. Ela não apenas conta a história, como a desenha em seu caderno com caneta esferográfica.

É este caderno que temos em nossas mãos quando lemos esta magnífica graphic novel.

A forma como a autora Emil Ferris nos faz acompanhar a história de Karen é única. Tira o leitor do eixo, deixa confuso de um jeito inteligente. É pura arte.

Arte, aliás, é um dos principais pilares desta história. Karen, por influência de seu irmão Dezê, é uma grande fã de arte e sempre vai ao museu. Ela tem uma forma muito interessante de sentir a arte. Ela vive a arte, sente, por vezes até entra nela. E é por isso que podemos dizer que a forma como a história é contada pode ser confusa: porque ela é uma obra de arte.

Conforme vamos lendo a narrativa de Karen, acompanhamos seus desenhos. Pode-se dizer que é até mesmo o contrário: enquanto apreciamos sua arte podemos ler sua descrição dos fatos também com palavras.

O plot principal trata de Karen tentando desvendar a morte de sua vizinha Anka Silverberg, uma sobrevivente do holocausto que, aparentemente, tem alguns distúrbios psicológicos. Muito por conta dos horrores do nazismo e da Segunda Guerra, mas também muito por conta das consequências da Guerra e de como a sociedade tratava as mulheres naquela época.

Ao longo das descobertas da perspicaz Karen, conhecemos não apenas a triste e densa história de Anka, como também os segredos de seu irmão Dezê (bem como o preconceito que ele sofre por ser latino em uma cidade e um momento histórico altamente preconceituoso), o drama de sua mãe que descobre estar morrendo de câncer entre outros assuntos polêmicos e intensos como drogas, homossexualismo, religião, filosofia, o já citado nazismo, exploração de menores e direitos civis, citando até a morte de Martin Luther Jr. que acontece no período onde a história se passa.

Um desses assuntos é a forma como Karen é tratada. Ela sofre bullying não só por ser latina, mas também por ser ‘estranha’. O fato de ser uma menina que não curte ‘coisas de meninas’, ama histórias de monstros entre outras ‘esquisitices’ para seu tempo e lugar. Por essa razão, ela acaba se vendo como uma estranha de fato. A diferença é que ela curte isso. Ela gosta de ser estranha, ela se vê como um monstro, sua obsessão.

Por isso que todos os outros personagens dessa história são pessoas normais e ela é um pequeno monstrinho. No início da história vemos ela se transformando em um lobisomem, inclusive. Essa é uma das quais sequencias não tão simples de serem entendidas a princípio.

Falando em coisas difíceis de entender, tentando estragar o mínimo possível sua experiência de leitura, é válido alertar para que você não espere um final fechado, explicado e talvez até mais simples de ser compreendido. Se você é daqueles que estão acostumados e até curtem finais em aberto pode ter certeza que vai ser do seu gosto.

O ponto de vista de Karen sobre os mais variados e sérios assuntos tratados no livro fazem toda diferença nesta história, afinal, apesar de ser muito inteligente e já ter uma bagagem cultural bem acima da média, ela é uma criança. A forma como ela interpreta e sente as coisas, é bem própria e lúdica.

No balanço geral, Minha coisa favorita é Monstro é um livro/HQ que merece muito sua atenção e vale cada centavo do investimento. Não a toa, levou três Prêmio Eisner (considerado o Oscar dos quadrinhos) em 2018: Melhor álbum, melhor roteirista/desenhista e melhor colorista. Além de outros vários prêmios da área ao redor do mundo.

A Cia. das Letras (através de seu selo Quadrinhos na Cia.) fez um excelente trabalho de edição, tradução e acabamento, afinal, estamos falando de uma história contada por uma criança que por vezes inventa termos e que conta tudo através de desenhos feitos à caneta esferográfica em um caderno, portanto, o livro emula um caderno com duas linhas, marcas de espiral e furos para encadernação. O material é de muita qualidade. Então, além de desfrutar de umas das melhores histórias dos últimos anos, é um livro que valoriza sua coleção e embeleza sua estante. Quem curte livros de suspense e drama, arte em geral e especialmente quadrinhas não pode deixar de ter essa obra incrível entre sua coleção.

Thiago Amaral

Geek inveterado e consumidor assíduo e voraz de cultura pop. Enquanto não está lutando com a Aliança Rebelde, dá aulas de Inglês. Curte Marvel & DC. Retro Gamer. Conhecido no underground como Pai da Alice.

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