Resenha | Graça e Fúria – Tracy Banghart
Se for para falar de feminismo, que tenha consistência do início ao fim. Seja história real ou ficção, se sustentar sobre o verdadeiro propósito é a prova de uma mente brilhante. A escritora americana Tracy Banghart cumpre todos esses critérios na obra Graça e Fúria, publicada no Brasil pelo selo Seguinte da Companhia das Letras.
A premissa convida para um universo onde mulheres são totalmente submissas aos homens, sem poder algum, nem mesmo referente ao próprio corpo. Elas existem para servir a família, ao marido e algumas se esforçam a vida toda para se tornarem graças; o termo é o mais perto do que conhecemos como “rainha”, mas no reino de Bellaqua, graças não têm o mesmo privilégio.
Serina é a irmã mais velha de Nomi e desde pequena foi criada para ser uma graça; seus pais focavam toda sua atenção nela, tentando deixa-la perfeita para ser escolhida pelo herdeiro. Apesar de um superior (o que chamaríamos de rei) ou seu herdeiro poderem ter várias graças ao mesmo tempo (uma relação de poligamia explícita e aceita), apenas uma pode se tornar a graça-maior; essa, normalmente, é quem gera os filhos do rei, mas não é tratada como mãe, tendo seu filho retirado dela.
Já Nomi é o oposto da irmã: sem a atenção dos pais e criada para prover os cuidados da casa, pode manter firme sua ideologia. Ela repugna a sociedade em que vive e o fato de as mulheres não terem liberdade sequer para ler. Mas ela conseguiu convencer o irmão gêmeo, Renzo, a ensiná-la, e esse segredo de anos é o responsável por virar sua vida e a da irmã de cabeça para baixo.
É a primeira vez que o príncipe herdeiro escolherá suas graças, e o processo para isso inclui levar as escolhidas de cada cidade e suas respectivas aias para o palazzo onde a família governante mora. Nomi não resiste ao ímpeto de roubar um livro da biblioteca e, ao fazer isso, desafia o herdeiro pessoalmente. Apesar de ter sido a irmã mais nova a praticar o crime, Serina é encontrada com a prova na mão, sendo condenada à ilha-prisão Monte Ruína – reservada para mulheres que, uma vez dentro, só saem mortas.
Se por um lado Serina sofre as consequências do erro não cometido, Nomi acabou sendo escolhida como graça do herdeiro em seu lugar. Porém, tendo uma criação não voltada para isso, ela se vê diante de uma realidade que, mesmo tendo cama confortável e banquetes deliciosos, se mostra uma prisão para sua essência revolucionária. Separadas pelas águas do mar, as irmãs farão de tudo para se reencontrarem. No caminho para isso, despertarão em várias mulheres o desejo de liberdade.
Com uma escrita prática, dinâmica e despida de exageros, Banghart consegue aplicar descrições que transformam os capítulos em episódios vívidos na mente do leitor. Ela foca em sentimentalismo voltado para o desejo de liberdade e revolução, nunca se perdendo em relacionamentos vazios. Mesmo que Serina esteja se aproximando cada vez mais de Valentino, o gentil guarda da prisão, ou Nomi se aproximando do irmão mais novo do herdeiro, Asa, nenhuma das duas arrisca colocar a existência deles e os sentimentos envolvidos no meio do propósito principal: salvar uma a outra.
A força da caçula é vista no princípio e tende a se reafirmar em todos os capítulos focados nela – além de curtos, cada um é destinado a visão de determinada irmã. Por conta disso, é em Serina que vemos maior evolução, quando ela enfrenta uma realidade cruel onde toda base de ensinamento recebida se torna pura hipocrisia. Sua submissão vira imposição, a reverência vira coragem.
O desenrolar da história, por vezes, soa rápido demais. Em um dia dois planos são criados e eles parecem fáceis, quase imaturos. Aos poucos, percebemos que a facilidade, na verdade, era traição inserida; e a imaturidade se revela inocência. Mesmo Nomi, com uma mente rebelde e visão de poder para mulheres, se encontra diante de pessoas e situações nunca imaginadas e, por isso, é de se esperar alguma emoção extra.
Eventos finais são similares a outra história que li recentemente, o que me deixou com um pé atrás. Contudo, a promessa do segundo livro se faz e tenho esperança de que qualquer semelhança venha a ser refutada. A chama da rebelião foi acesa, deixando qualquer leitor ansioso pela continuação.