Resenha | Cidade das Garotas – Elizabeth Gilbert

O mundo contemporâneo é viciado em fofocas, principalmente, do mundo dos famosos. Grande parte adora o glamour. Isso, em nossa vivência atual. Não se espera que gostemos desse mesmo assunto quando se passado há mais de sessenta anos. Mas é exatamente o que acontece em Cidade das Garotas, romance de Elizabeth Gilbert, autora de Comer, rezar e amar, ambos publicados pelo Grupo Companhia das Letras.

Elizabeth Gilbert

A obra é contada pela personagem principal, Vivian Morris, uma mulher sempre à frente de seu tempo. Aos seus noventa anos, ela vê a oportunidade de contar sua vida através de cartas para uma mulher que conhecemos como Angela. Essa, filha do grande amor da vida de Vivian. Mas, para chegarmos a esse romance e entendermos a relação dela com o pai de Angela, é preciso voltar muito antes, no auge dos seus dezenove anos. Parece loucura precisar acompanhar setenta anos da vida de uma pessoa para saber como chegou tão longe, mas cada parágrafo é extremamente necessário para amadurecimento da personagem e expressar importantes lições de vida.

Vivian nunca foi exemplo de nada – pelo menos, é o que a sociedade parece dizer para ela. Comparada sempre ao exemplar irmão, depois as exemplares alunas da escola e da faculdade, nossa garota consegue ser o oposto de todos eles. Fazia fugas noturnas durante a faculdade para beber em bares próximos, mal prestava atenção nas aulas e costumava ter pensamentos revolucionários para os anos 30 e 40. Graças a avó, aprendeu a costurar habilidosamente, a ponto de sempre se tornar requerida em todos os lugares por onde passa. Foi assim que ganhou um espaço no Lily Playhouse, o teatro decadente de sua tia Peg.

Após ser expulsa da faculdade (um ambiente somente para as garotas, especificamente, de sua classe média-alta), é também “expulsa” pelos pais, mandada para a cidade grande, Nova York, onde deverá viver com a tia e refletir sobre as próprias atitudes. Diferente dos que os pais esperavam dessa mudança, é lá que Vivian aflora todos os seus antigos ideias e vontades.

Graças a ambientação no teatro, temos uma visão diferenciada de outras obras passadas na mesma época. Apesar de o Lily não ser um teatro de glamour e os membros dentro dele serem pessoas resgatadas por Peg de uma possível vida ao léu, com a chegada de novos, o livro nos permite conhecer a vida encantada dos artistas.

Vivian logo encontra um afazer dentro do grande prédio – sua grandeza não condiz com riqueza –, se tornando responsável por todos os figurinos. Com a ajuda das novas amigas coristas, ela decide perder a virgindade, abrindo novos horizontes para o que deseja fazer dali em diante. Seu desejo por prazer, animação e aventuras a faz conhecer todos os cantos de Nova York ao lado da amiga Celia Ray, conhecer todos os tipos de pessoa e viver experiências que sequer imaginou.

Como nem tudo é perfeito, grandes erros são cometidos pela personagem. Uma traição em específico é o gatilho para ligar passado ao futuro, o nosso presente. Ao passo que nos presenteia com cada personagem e finaliza a história de exatamente todos eles, Gilbert nos apresenta sua capacidade em ligar todos os pontos deixados na história, aqueles que em certo momento julgamos desnecessários.

Em pouco mais de quatrocentas páginas, em nenhum instante se deseja parar a leitura. Nem mesmo quando a vida da jovem recebe um choque duro e monótono, a afastando momentaneamente dos holofotes da grande cidade. Desejamos ler cada vez mais rápido, ansiando e torcendo para que o mundo de aventuras e surpresas retorne.

Todos os personagens são autênticos e únicos, cada um, em meras aparições, conquistam o leitor e se destacam na memória. A escrita leve, engraçada e íntima conecta autora a personagens e aos leitores. O livro é daqueles que você sente falta quando para de ler, e morre de saudade ao chegar ao final, desejando que mais setenta anos sejam possíveis.

Cidade das Garotas é uma longa história, cheia de altos e baixos, enfatizando o contraste entre as classes sociais, as tensões durante a 2ª Guerra Mundial e, mais importante, realça a independência feminina. Impõe a força da mulher em diferentes sentidos, a capacidade de ser quem quiser, mesmo em anos difíceis que reprimem suas sinceras expressões de personalidade. Ao acompanharmos as escolhas de Vivian, vemos uma mulher – recriminada por simplesmente ser – aprender com seus erros sem abandonar sua verdadeira essência, mostrando que é possível ser uma boa pessoa sem precisar ser uma “boa garota”.

Pedro Cardoso

Editor do Capacitor, apaixonado por games, filmes e literatura sci-fi/fantástica.

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