Resenha | Cartas Para Minha Vó – Djamila Ribeiro

Para muitos de nós, a avó é a figura que personifica o amor. É ela quem acolhe, nos defende, nos mima e acima de tudo, compartilha conosco uma cumplicidade que é difícil de explicar. Pela intensidade dos nossos sentimentos em relação as vós, terminamos acreditando que o tempo se torna infinito e as despedidas, nem sempre são possíveis e/ou suficientes para quem fica.

Dentro desse contexto, Djamila Ribeiro abre seu coração no livro Cartas para Minha Avó e de forma muito emocionante, narra suas memórias, dúvidas, anseios, fragilidades e reflexões, para sua avó, D. Antônia.

“Essa imagem de mulher negra forte é muito cruel. As pessoas esquecem de que não somos naturalmente fortes. Precisamos ser porque o Estado e a iniciativa privada são omissos e violentos. Restituir a humanidade também é assumir fragilidades e dores próprias da condição humana. Somos subalternizadas ou somos deusas. E pergunto: quando seremos humanas?”

Lançado pela Editora Companhia das Letras, Djamila Ribeiro nos apresenta a história da família narrando desde sua infância até a atualidade, quando já é uma das intelectuais mais reconhecidas do Brasil. Ao longo da narrativa, surgem reflexões sobre temas como racismo, ancestralidade, masculinidade tóxica, entre outros.

Djamila Ribeiro

A leitura da obra é muito fluída e a todo momento nos sentimos que estamos é uma conversa entre amigos. A escrita mostra a coragem de quem atingiu a maturidade que a vida traz e a sabedoria de quem soube acolher tanto as dores quanto as alegrias da própria história, para que pudesse crescer.

Diferente de muitas biografias que vemos no mercado, Cartas para a minha vó vem carregada de reflexões sobre os mais variados assuntos. O racismo é debatido e aparece em muitos momentos na vida da autora, assim como a importância da representatividade e a necessidade de rever as práticas educativas e as mídias como forma de combater essa cultura criminosa.

“Preparar para a vida, quando se trata de uma criança negra, é ser brutalizada o bastante para aprender a lidar com a brutalidade do mundo. É um ciclo que se propaga impedindo a gente de ser, somente ser.”

O feminismo é outro tema muito presente, e aparece junto a reflexões sobre casos de assédio, a visão social da mulher negra como símbolo de puro desejo sexual e ainda a objetificação da mulher.

“Passamos a vida culpando as mulheres que nos criam, assim como muitas vezes culpei minha mãe, sem olhar para quem nos tira o chão, a casa, as oportunidades. Acabamos sempre onerando outras mulheres pela falta de escolhas que nos é imposta. São sempre elas que precisam abrir mão do pouco que têm para alimentar toda a aldeia.”

Em um dos capítulos mais delicados, a Djamila reflete sobre a maternidade e fala com franqueza sobre como foi difícil para ela os primeiros anos como mãe.

“Algumas mulheres me achavam louca por não me sentir preenchida com a maternidade e a vida de casada. Amava ser mãe …, mas detestava o que se entendia por maternidade: a abdicação da nossa existência como sujeito.”

Por fim e de forma mais intensa, cabe destacar a Ancestralidade e que vem acompanhada com a religião do Candomblé, que sempre foi algo presente na vida da família.

”São muitos os obstáculos, as porradas que a gente toma por “ousar” sair do nosso lugar, e nada foi fácil. Apesar de receber muito carinho e ser reconhecido pelo que faço, perceber o afeto daquelas mulheres foi diferente. Foi como me reencontrar com uma história da qual fui apartada. Foi como se elas estivessem me aceitando de volta com os braços abertos, me perdoando. Ali, eu me senti reconectada com uma ancestralidade perdida, uma espécie de volta para casa. Quando aqueles rostos negros se emocionavam por me ver ali, expectadora delas, eu senti vontade de chorar. Os abraços e apertos de mão continham a benção que as mais velhas dão às mais novas, como eu sempre pedia a você e à minha mãe antes de dormir. Elas se emocionavam porque se sentiam representadas pelo trabalho que eu faço. Sim, eu me emocionava com o reconhecimento delas, mas também por sentir que parte da minha história havia sido restaurada.”

Cartas para minha vó é uma obra com uma força muito grande pela relevância dos assuntos abordados e, também, por possibilitar que ao visitarmos a biografia de nossas referências, a gente desperte nosso olhar para acolhermos a nossa própria história e assim chegarmos à maturidade e sabedoria de quem pode ajudar novas gerações a se encontrarem no próprio caminho.

Pedro Cardoso

Editor do Capacitor, apaixonado por games, filmes e literatura sci-fi/fantástica.