Recomendações | Kevin Smith e o Universo View Askew
Na última terça-feira (18), o filme Procura-se Amy de Kevin Smith completou 20 anos desde o seu lançamento. Se você nunca assistiu ou ainda não conhece Kevin Smith, aqui vão alguns motivos para conhecê-lo.
Na verdade, é bem provável que você já tenha ouvido falar no trabalho de Kevin Smith. Ele já escreveu algumas histórias do Demolidor para os quadrinhos, em especial o arco Diabo da Guarda. Além disso, também esteve envolvido, chegando inclusive a atuar, no tão polêmico filme do Diabo Vermelho da Marvel com Ben Affleck no papel principal. Dirigiu e/ou escreveu um ou dois filmes que se tornaram mainstream, tais como “Menina dos Olhos” (Jersey Girl); “Pagando bem, que mal tem?” (Zack and Miri make a porno) e “Tiras em Apuros” (Cop Out). Também dirigiu episódios das séries The Flash e Supergirl.
Como dá para notar apenas por essa parte ‘mais famosa’ de seu currículo, Kevin Smith é um grande nerd. Isso fica ainda mais claro quando se observa a parte mais underground do seu currículo. E o principal item desse currículo é o universo que ele criou entre seus filmes, o chamado View Askew-verse.
Bem antes da Marvel pensar em fazer filmes e personagens interligados que culminassem em um filme maior, com easter-eggs e participações de personagens de outros filmes, Kevin já fazia isso desde os anos 90.
Tudo começou com a produção totalmente independente de O Balconista (Clerks) em 1994. Consta que Kevin teve que vender toda sua coleção de quadrinhos, estourou o limite de alguns cartões de crédito, usou o dinheiro que estava guardado para faculdade e ainda o dinheiro que recebera do seguro de um carro que havia perdido em uma enchente. Tudo isso para conseguir juntar pouco mais de 27 mil dólares e fazer o filme acontecer. Para completar ainda teve que deixá-lo em preto e branco, pois era mais barato assim. No fim, esse detalhe acabou dando um ar mais cult ao filme.
O filme mostra o cotidiano de dois balconistas da loja de conveniência Quick Stop – e é basicamente isso. Contudo, os diálogos são super intensos e recheados de ironia, proporcionando boas risadas.
Entretanto, a real contribuição deste filme para o universo que viria a surgir em seguida é a introdução dos personagens Jay e Silent Bob (Bob Caladão no Brasil), essas duas figuras que virariam ícones da cultura pop underground “noventista” – se é que isso existiu. Nesse filme, eles são dois traficantes que vendem drogas em frente à loja onde se passa todo o filme e interagem com praticamente todos os personagens.
Como o nome já sugere, Silent Bob é um cara calado que normalmente só se expressa através de gestos ou expressões faciais, quando muito, tem uma fala no filme inteiro (e só para constar, é o próprio Kevin quem interpreta). Jay, por sua vez, é um falador compulsivo, e em absolutamente toda frase proferida há palavrões e gírias. A dupla também sabe muito de cultura pop e está sempre citando algum filme ou história em quadrinho, sendo também muito fã de rock n’ roll.
Por mais difícil de acreditar, O Balconista fez sucesso suficiente para que Kevin conseguisse reaver o investimento que fez e rendeu o necessário para que ele continuasse na indústria e fizesse aprimoramentos, claro, contando com os amigos.
Em seguida, temos Barrados no Shopping (Mallrats) de 1995. Mais uma vez o plot é extremamente simples: as namoradas de Brodie e TS terminam com eles no mesmo dia, então os amigos resolvem ir ao shopping para esfriar a cabeça. Note-se que esses eventos se passam um dia antes dos eventos de O Balconista.
Dessa vez Kevin contou com a ajuda dos amigos para compor o elenco. Os protagonistas da película são Jeremy London (TS), que nessa época estava começando a fazer sucessos com Party of Five, e Jason Lee (Brodie), que também estava no início de sua carreira, que foi consolidada com a ajuda do próprio Kevin Smith, afinal esse foi o primeiro de uma série de 7 filmes em que ambos trabalharam juntos.
Além disso, o filme conta também com Shannen Doherty, que àquela altura era uma das queridinhas da América por seu papel de Brenda em Beverly Hills 90210, e Joey Lauren Adams, não muito famosa à época mas que viria a se consolidar tempos depois, e por fim nada menos que Ben Affleck, que viria a repetir a dobradinha com o amigo nerd pelo menos outras 5 vezes.
Além da ideia de um universo conectado, há nesse filme mais uma coisa em que Kevin acabaria sendo visionário: Cameo de Stan Lee.
É claro que as referências nerds estão espalhadas por todo o filme e variam desde super heróis em geral (como visto no clip com Stan Lee) até Tom & Jerry, passando inclusive por Clerks, fazendo o elo necessário para a coesão do Universo View Askew. Ao final, Jay & Silent Bob seguem por uma estrada sem destino acompanhados por uma orangotango, que sequer é citada no filme e é o link para um outro filme que ainda viria a acontecer neste universo.
O próximo na linha temporal é o primeiro filme mais sério, por assim dizer, desse universo: Procura-se Amy (Chasing Amy) de 1997.
Aqui, Holden (Ben Affleck) e Banky (Jason Lee) são dois amigos quadrinistas que tem uma vida satisfatória. Até que um dia Holden conhece Amy (Joey Lauren Adams) e se apaixona por ela. Tudo ia bem, até Holden dizer o que sentia por Amy e, consequentemente, descobrir que ela é lésbica.
A partir daí, o filme entra em uma vibe meio filosófica, sem perder os diálogos carregados e cheios de piadas característicos de Kevin. O filme gira em torno da questão de uma pessoa heterossexual aceitar (ou não) que a pessoa do sexo oposto em que está interessada é homossexual.
Novamente, Jay & Silent Bob estão aqui, e não fica claro em que momento da linha temporal essa história se passa. Bob, inclusive, é responsável pelo conselho a Holden que pode ter mudado a história a partir dali. Conforme dito, este personagem pouco fala, mas quando o faz, é sensacional.
Nesse filme conseguimos ver um lado até então desconhecido de Kevin, um lado maduro, ciente de sua função social e inserido numa realidade mais séria. Tudo isso sem perder a nerdice e as piadas irônicas e por vezes até bobas e infantis.
Aqui há também bons cameos, especialmente do grande amigo pessoal de Ben Affleck, Matt Damon, que à essa altura já deslanchava na carreira.
O próximo filme do Universo é Dogma de 1999. Talvez esse seja o mais famoso de todos, muito por conta da polêmica que causou.
Kevin foi criado num ambiente católico rigoroso (talvez daí venha sua identificação com o Demolidor). Dessa forma, conhecia bem todos os dogmas, as regras e conceitos da religião.
No tal filme, ele questiona, e até zomba, alguns desses dogmas. A história é sobre dois anjos: Bartleby (Ben Affleck) e Loki (Matt Damon). Eles foram expulsos do céu e condenados a vagar pela Terra, mais precisamente em Winsconsin. Um dia, tentando fazer a Igreja Católica voltar a ser mais popular, tentando atrair mais jovens talvez, a comunidade local decide criar um portal que prometia indulgência plena a todos aqueles que passassem por ele. Apesar de ter sido criado pelo homem e com intenções duvidosas, os anjos sabem que esse portal funciona, pois as pessoas têm fé nele.
Decididos a voltar aos céus, eles resolvem passar pelo portal. Acontece que se eles passarem vão provar que Deus falhou, e isso causaria uma espécie de bug na existência, pois Deus é infalível, e dessa forma, tudo deixaria de existir.
Aí começa uma corrida entre seres do céu e do inferno querendo impedir que eles o façam, para que tudo como conhecemos não deixe de existir.
Nesse filme, fica claro o poder de amizade de Kevin com muitos artistas. Há vários atores e atrizes famosos, como Salma Hayek, Linda Fiorentino, Alan Rickman, George Carlin e até Alanis Morissette.
Como se não bastasse a polêmica do plot em si, afinal mexer com religião nunca é recomendado, Kevin ainda fez questão de piorar: Chris Rock é o 13º apóstolo, não mencionado na Bíblia pelo fato de ser negro; há uma imagem que foi apresentada como Buddy Christ (uma imagem que você já deve ter visto uma centena de vezes na internet), onde Jesus está um pouco mais descolado; George Carlin, um comediante famoso por suas piadas de humor negro além de ser um dos mais famosos ateus, daqueles que adoram fazer piada com religião, é o cardeal (corrupto) responsável pelo portal; Deus é uma mulher, nada menos que Alanis Morissette. E ainda há outros…
Novamente Jay & Silent Bob têm papel (muito) importante na trama. São eles inclusive o ingrediente final desse Universo.
O último e mais mainstream filme do View Askew-verse, é uma das mais bizarras traduções de títulos de filme do Brasil (e olha que só aqui nesse texto tem pelo menos uns dois bem ruins): o título original era Jay & Silent Bob Strike Back (2001), uma clara referência ao segundo filme da trilogia original de Star Wars. O título em português escolhido foi O Império do Besteirol Contra-Ataca. Além da palavra besteirol só ser usada pelos estúdios e mais ninguém na vida real, isso acabou associando indevidamente o filme a outro lançamento cinematográfico contemporâneo seu, Não é mais um besteirol americano (outro título lamentável), que é uma paródia que nada tem a ver com os filmes de Kevin Smith. E isso acabou afastando o grande público sem ao menos dar a eles a chance de conhecer a obra.
OK, este não é mesmo o melhor filme, nem mesmo deste Universo. Mas além de ser uma espécie de Vingadores do Kevin Smith, afinal todos os outros filmes culminam neste, ele é repleto de referências à Cultura Pop, quase uma homenagem a tudo e todos que influenciaram seu criador, bem como um prato cheio para os consumidores desse nicho.
Fora o óbvio Star Wars, há citações a Scooby Doo, ET, Pânico, American Pie, Planeta dos Macacos, Dawson’s Creek, Gênio Indomável… E deve haver muitos outros que olhos mais atentos podem encontrar.
E os cameos? Wes Craven, Will Farrell, Matt Damon, Ben Affleck (fazendo dois papéis), Carrie Fisher, Mark Hammil, Seann William Scott, Tracy Morgan, Joe Quesada… E isso deve ser só metade!
Jay & Silent Bob descobrem que suas histórias virarão um filme em Hollywood e não ganharão nada com isso, então, acompanhados da orangotango de Mallrats, partem numa saga repleta de meta linguagem com direito a até quebra da quarta parede.
Dessa forma, é possível afirmar que muito do que vemos hoje nos filmes de super herói, especialmente no quesito ‘Universo’, pode ter sido influenciado por Kevin Smith, já que ele já pôs em prática, testando lá nos anos 90 (juntamente com Quentin Tarantino, de uma forma semelhante mas menos explícita). coisas que só veríamos de novo décadas depois. Até a participação de Stan Lee, que teve relevância na história e não foi apenas um easter egg. É justo dizer que Kevin Smith é um grande colaborador para Cultura Pop nos últimos 25 anos. Mesmo que você não o conhecesse até agora. E se esse for o caso, faça um favor ao geek em você e conheça sua obra. Você deve isso a ele.