Crítica | O Doutrinador

Imagine um vigilante brasileiro que cansado do sistema resolve fazer justiça eliminando todos os corruptos da forma mais brutal possível. Essa é a premissa de O Doutrinador, adaptação para os cinemas da HQ homônima de Luciano Cunha, lançada em 2008. Contudo, a execução não corresponde às altas expectativas que tanto quem conhece a HQ possa ter, como quem só lê a sinopse possa imaginar.

O maior problema do filme é a direção. Gustavo Bonafé mostra que ainda tem que maturar na cadeira de diretor e não entrega uma produção à altura que o roteiro exige. O diretor foi pouco criativo e entregou uma execução clichê demais para um filme que pede algo mais ousado, seja underground e cru ou superprodução. O primeiro nome que vêm à cabeça é, inevitavelmente, José Padilha, que foi alçado à primeira prateleira do cinema brasileiro (e quiçá mundial) com Tropa de Elite. Obviamente ele domina o gênero e provavelmente faria um trabalho muito mais consistente. Mas como esse é um nome muito acima da realidade, Afonso Poyart, que nos deu (o excelente e subestimado) 2 Coelhos, também poderia ter repetido o trabalho competente e surpreendente, cuja temática era parecida, nessa produção.

 

Muito provavelmente também por conta da direção, as atuações são muito fracas. Isso pode ser observado por qualquer espectador mediano acostumado com produções nacionais, inclusive as consideradas alternativas, que quase sempre trazem excelentes atuações.

Kiko Pissolato, que faz o protagonista Miguel, só consegue ser convincente quando está mascarado e/ou em cenas de ação. No momento de maior dor do personagem, aquilo que o faz ser quem é, assim como quando Bruce Wayne perde seus pais e nasce o Batman, Miguel fica atônito. Pouco demonstra sua dor, sua angústia, sua loucura. Somente em alguns poucos momentos é atormentado. Muito pouco convincente. Isso sem falar em tantos outros momentos do longa onde Miguel é muito pouco crível, com falas que soam artificiais ou atitudes frias demais pra quem está furioso com todo o sistema. Você consegue imaginar um Frank Castle que não estaria morrendo de raiva o tempo todo com a corrupção brasileira? Pois este é o Miguel do filme. Não o Doutrinador, esse está 100% pistola o tempo todo. Por isso, Kiko só é convincente quando mascarado.

Os outros atores também não colaboram para uma mudança nesse cenário. Tainá Medina, que interpreta a sidekick/oráculo do Doutrinador, Nina, tem uma atuação que não compromete, mas também não empolga. Sua personagem permitia mais do que foi apresentado, mas ele fez um bom ‘feijão com arroz’. Samuel de Assis, que faz Edu, melhor amigo de Miguel, completa a tríade de protagonistas. Dos três, este é o que tem a atuação mais comprometedora, pois diferente de Kiko, não tem nem bons momentos. A impressão que passa é que um ator totalmente inexperiente, que não estava apto para interpretar um personagem que exigia tal complexidade.

Quanto os consagrados Eduardo Moscovis, Tuca Andrade e Natália Lage, pode-se dizer que deixam ainda mais a desejar. Ao primeiro, bastaria repetir sua atuação na novela Senhora do Destino, onde interpretou (com muita competência) um político corrupto e inescrupuloso. No entanto, isso não acontece. Ao assistir ao cinismo do governador Sandro Corrêa, não sentimos a raiva que os políticos da vida real nos fazem sentir. Assim quando a violenta cena do Doutrinador o castigando ainda no primeiro ato do filme, sentimos apenas repulsa e não catarse, quando a ideia é que nos sentíssemos uma confusão moral quanto a tal atitude. Tuca, que o delegado (clichê, mas real), é convincente, entretanto. Porém, pra quem já conhece seu trabalho, o que se vê é um ‘mais do mesmo’. Não chega a ser um problema, mas ele certamente poderia fazer melhor. Natália está no mesmo nível de seu parceiro de cena, o protagonista. Sua dor não convence, sua repulsa ao que Miguel se torna, não é visível em suas atitudes e não é sentida em suas palavras. A personagem poderia ter sido a voz da consciência do protagonista, aquela que faria o vigilante manter um pouco de sua humanidade, que seria o que sobrou de sua bússola moral. Não é.

Há participação de outros rostos famosos como Helena Ranaldi, Natallia Rodrigues, Lucy Ramos e Marília Gabriela. Todas com participações pequenas, mas que também não são marcantes. Fica uma sensação de que precisaríamos ter visto um pouco mais das personagens da primeira e da última. Carlos Betão, um rosto menos conhecido que interpreta um dos (se não o) principais vilões, também não causa a repulsa necessária que o personagem pede. Em suma, pode-se concluir que as atuações são todas abaixo do que se espera ou gostaria.

A trilha sonora é um dos pontos altos do filme. Baseada em muito rock n’ roll, que dão o tom exato nos momentos de revolta e ação, além das passagens de tempo e transições. As sequências de ações também estão boas, bem como a maquiagem e toda direção de arte. O roteiro, como um todo, é bem interessante. Mostrar um vigilante brasileiro é algo ainda a ser mais explorado. Há muito potencial, muito onde ir. O Doutrinador abre bem essa porta, e sabe aproveitar as lacunas deixadas especialmente pelo Capitão Nascimento de Tropa de Elite. Poderia ser mais? Sem dúvida! Deixa a desejar? Não exatamente. É uma boa ideia que ainda pode render mais. E vai, afinal, após os créditos, temos um breve teaser da série de mesmo nome que estreará ano que vem pelo canal Space.

O Doutrinador é um filme que tem muitas falhas, e esbarra em um problema de orçamento que muitos filmes brasileiros devem enfrentar (a cena do final do filme deixa claro que há muito a evoluir em efeitos especiais, ou que há vontade mas falta dinheiro). Contudo, é um filme corajoso em muitos aspectos, mas que deveria ter se assumido como alternativo e não tentar ser mainstream. Já que é uma adaptação de quadrinhos (não chame de gibis, como o filme deixa claro em uma das melhores cenas), cabe uma comparação para quem é familiar com a mídia: é um filme que deveria ser lançado no selo Vertigo ou Max e acabou ficando em um limbo entre as publicações infanto-juvenis e adulto (e mainstream).

Além do mais, poderia ter ganhado muito mais força se tivesse tido um melhor timing no seu lançamento. Poderia ter surfado mais na onda gigante das discussões políticas que bateu como uma tsunami nos grupos de famílias e rodas de amigos nos últimos meses no país. Claro, corria o risco de levar um tombo enquanto estava na crista e ser engolido, tomar um famoso ‘caixote’ por ser acusado de estar defendendo um lado e/ou o outro (afinal, era a isso que se resumiam as discussões/brigas, e ainda poderia ser acusado de não estar tomando parte por nenhum lado). Mas nesse caso, seria uma boa publicidade e quem sabe isso aumentaria o investimento para uma sequência ou até mesmo para a já confirmada série. Além de alavancar ainda mais forte as vendas das HQs.

As discussões sobre fascismo, moral e a exploração do tema ‘corrupção’ que o filme acaba usando como pano de fundo, poderiam ir muito mais a fundo. Na verdade é isso que o filme propõe. Mas com a qualidade em que foi executado, pode acabar atingindo muito menos ao público do que deveria. Pior: pode acabar virando piada, ou fracassando. O que seria uma grande pena, pois a HQ tem muita qualidade bem como todo o Universo Guará do qual faz parte. E o sucesso poderia incentivar muito mais do que apenas o cinema alternativo nacional, mas o quadrinho independente e o mais importante: a troca de ideias e o pensamento crítico.

Se você gosta de valorizar o cinema e arte nacional como um todo, você precisa dar uma chance ao filme. É preciso incentivar a arte, mas ao mesmo tempo saber criticá-la. Para tal, é preciso tirar suas próprias conclusões. Vá ao cinema e descubra se você concorda ou discorda dessa crítica embasando seus argumentos para ter tal opinião. No processo, dê um pouco de incentivo à cultura enquanto reflete sobre o que o filme representa. Isso tudo é muito importante para o país, especialmente nesse atual momento de transição (e tensão) o qual atravessamos.

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Pedro Cardoso

Editor do Capacitor, apaixonado por games, filmes e literatura sci-fi/fantástica.

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