Contos | O Escolhido (?) – Guilherme Ferreira
“Agora na escuridão, aparece a luz
A Parede do Sono é fria e luminosa
A Parede do Sono está quebrada
O sol brilha, você está acordado”
Black Sabbath
A conclusão a qual os Seres-Pensantes (a origem dessa alcunha mantém-se uma incógnita, decerto foi autoproclamada) chegaram ao longo dos anos após infindáveis teorias, experimentos, estudos científicos e afins é que o tempo consiste em ser uma unidade de medida absoluta. Desconsiderando assim qualquer outro parâmetro que tenha sido apresentado até então. A questão que deve ser observada é que se há tanta certeza no que diz respeito a essa análise, como definir o acaso? Ele seria a contraparte do tempo? Uma recusa ao preciso sistema imposto pelo determinismo ou uma falha displicente com intuito de desconstruir paradigmas, somente assim gerando eventos além de sua capacidade de controle…
Esse era apenas um trecho do artigo científico escrito pelo premiado jornalista Fausto Ricci, um homem muito respeitado no meio acadêmico e referência em jornalismo investigativo, temido por cientistas por sua perspicácia e disposição em desmistificar o que era ditado por eles. Veio de uma família humilde, natural de Platô – 9, uma árida região do continente de Dhallas. Aplicado nos estudos, mostrou desde jovem inteligência incomum. Incentivado pelos pais conseguiu bolsa de estudo integral financiado pelo Ministério Absoluto que sempre incentivou a progressão de superdotados sugerindo apenas que fossem agradecidos se fosse necessário. Detentor de uma escrita precisa foi reconhecido pelo perfeccionismo e compromisso com a veracidade. Qualidades que lhe renderam prestígio e fortuna. Mas isso tudo ficou no passado, agora a realidade a qual se encontra é outra.
I.
Fausto ou Fausty apelido maliciosamente dado pelos fornecedores de Stolixx, que por sinal eram os que chegavam mais próximo da ocupação de amigos que um viciado poderia ter, foi despertado pelo chiado incômodo de uma dupla de ratos que brigavam ferrenhamente por um naco de carne apodrecida. Com a visão embaçada e com o rosto ainda colado na poça de vômito a qual ele mesmo botara para fora há horas, dias, semanas atrás? Quem era capaz de dizer? De qualquer modo isso já não fazia diferença. Viu que o dito pedaço deixara um pequeno rastro que tinha origem de seu golfo. Deduziu que deveria ser o resto de algum de seus órgãos que restaram. Ironicamente nada era mais reconfortante do que acordar com aquela bela visão. Juntou forças e levantou-se arquejando. Deu uma boa conferida na pocilga que era seu barraco, com o intuito de organizar as idéias. Era impressionante como sua vida tinha chegado aquele ponto, se lhe perguntassem não saberia responder, talvez culpasse as drogas, o álcool, o interesse de pessoas próximas, má administração dos bens… Todo o processo era um emaranhado confuso. A única coisa que diria com convicção é como tudo começou e completaria com o breve relato da melhor coisa que ele fez na vida e como ela foi morta tão precocemente pelo tempo: Sua filha.
Há dias vinha criando coragem para acabar com aquela existência medíocre e ingrata. Na prática mostrou-se muita mais fácil ser planejada. Independente dos infortúnios que foi acometido, sua determinação não foi apagada. Com a desculpa de pagamento na próxima semana, pegou algumas cápsulas de uma nova droga que circulava pelos subúrbios de Kovac. Os comentários eram absurdos, alimentados pelo boca a boca dos marginais e vagabundos. Diziam que seu efeito era a maior viagem, pois proporcionava a capacidade de visitar outras realidades e universos. Outros alegavam que era possível rever o passado e ter vislumbres do futuro. Entre contradições o recado que se mantinha unânime era que se consumidos mais de um comprimido a morte era certa! Na dúvida Fausty pegou dez.
II.
De volta ao seu muquifo, despiu-se das roupas fedendo a urina e lançou-as no carpete bolorento. Deu alguns passos e parou em frente ao seu “cantinho sagrado”, um espaço qualquer do pequeno cômodo abafado que escolhera para chamar de seu. Completamente nu, curvou-se até as nádegas pousarem no chão, recostou as costas e cruzou as pernas. Segurando os dez comprimidos na palma da mão direita, fitou-os durantes alguns segundos que pareceram uma eternidade esperando que algum filme contando sobre toda a sua vida passasse diante de seus olhos. Reconhecendo que aquilo era pura besteira, deu um prolongado suspiro e levou todas as cápsulas direto à boca e engoliu em seco, torcendo para que o efeito definitivo fosse rápido e indolor. Afinal ele achava que poderia ter um último desejo como capricho.
III.
Frio, calor, rápido, lento, vazio, completo, impressionante, tedioso, iluminado, trevas, nunca, sempre, lindo, horrível, antes… AGORA!
Fausty deu-se por si quando sentiu seu corpo receber uma descarga de adrenalina. Era impossível se mover, olhava ao redor em completo horror por não conseguir processar tantas imagens que passavam ao seu redor. O que mais lhe causara pânico era que nenhuma delas podia de certo compreender. Em um misto de sensações, teve sua atenção atraída por uma voz que se assemelhava ao som de milhares de trovões unidos:
– FAUSTO! Acalme-se.
Ainda confuso, viu todo o conjunto de imagens condensarem-se em uma única forma, à medida que isso acontecia ela caminhava lentamente até ele, ganhava pernas, braços e rosto. Um rosto que conhecia melhor do que ninguém: O de sua filha. Incapaz de se mover, viu aquele ser aproximar-se, sequer movendo os lábios e de expressão fúnebre falou como se cantarola-se cada palavra:
– Sua presença é uma afronta inoportuna, não uma surpresa. Pela ousadia faço da sua vinda um motivo para transcender… Existem milhões de universos além da sua compreensão, cada qual com suas leis, formas e vidas, algumas racionais outras nem tanto. Cada universo tem uma fonte de alimento. A do seu sou eu. Como tudo é finito, minha energia está se esvaindo para se transformar em outra existência. Agora vá e presencie o fim de uma era. Meu presente para você será o privilegio de observar tudo o que conhece ruir. lhe concedo a imortalidade.
Fausty acordou com seu próprio grito, ensopado de suor. Ao que parecia nada estava fora do lugar. Sequer a lua havia mudado de posição. Abraçou os joelhos contra o peito esquelético, coberto com a incômoda incerteza de que tudo aquilo tivera sido um pesadelo ou a confirmação de uma danação infinita.
Conto escrito por Guilherme Ferreira.
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Exímio!