Crítica | Coringa (Com Spoilers)

Aviso: Esta crítica contém spoilers. Caso não tenha visto o filme, confira a nossa crítica sem spoilers

Desde aproximadamente o início dos anos 2000 os filmes de super-herói tem estado em alta. Eles deixaram de ser um sub-gênero e mudaram de status. Já se vão cerca de 20 anos com o gênero estando em alta e fazendo cada vez mais dinheiro com produções cada vez melhores e contando com profissionais mais consagrados em seus elencos e equipe de produção.

Muitos dizem que a fórmula já saturou. E muito por conta do que a Marvel Studios fez, tanto por lançar tantos filmes em espaços curtos de tempo, como por trazer o conceito de universo compartilhado para um patamar alto e que eleva o nível da ‘competição’, o gênero agora estaria em decadência. Precisando, portanto, de reinvenção, de novidade.

Recentemente, algumas produções conseguiram dar um novo ar, saindo da fórmula. Por razões diferentes, é possível citar Deadpool e Logan como filmes que ousaram experimentar variações no gênero. E se saíram muito bem.

Contudo, a DC não estava conseguindo ter o mesmo sucesso de público e crítica desde O Cavaleiro das Trevas, que por sua vez, também não era o filme de super-herói ‘convencional’. Sendo também um ponto fora da curva.

Coringa é a volta por cima da DC. É o principal passo em direção a essa ‘reinvenção’ do gênero que muitos dizem ser necessária para a sobrevivência do mesmo.

Certamente você já deve ter lido muita coisa por aí a respeito do filme, além de ter tido suas próprias impressões pelos trailers (caso ainda não tenha assistido ao filme). Aqui mesmo você pode ler nossa crítica sem spoilers.

Assim sendo, não vamos nos repetir falando da maravilhosa atuação de Joaquin Phoenix (apesar de que nunca será dito o suficiente). A partir daqui, esteja avisado que esse texto contém spoilers.

O principal a se saber sobre o filme, é que ele não é do tipo que o público comum está acostumado. Ele tem um ritmo lento na maior parte do tempo, tem cenas contemplativas, ângulos incomuns, e um drama muito intenso. É muito mais um filme para te fazer sentir e pensar do que se distrair e relaxar, se divertir.

Arthur Fleck é um homem que sofre de transtornos psicológicos que o tornam ao mesmo tempo alvo para alguns e completamente invisível para a maioria. Ele trabalha como palhaço para uma pequena empresa especializada nisso, fazendo propaganda nas ruas, animando crianças em hospitais, e por aí. Claramente ganha uma mixaria que mal dá pra ter a mínima dignidade que se poderia esperar de alguém com um trabalho que pode ser humilhante mas que ao mesmo tempo traz alegria.

Como se sua vida por si só não fosse triste demais, sua mãe também tem seus distúrbios e depende de seus cuidados e do quase irrisório dinheiro que Arthur traz pra casa.

Ele sonha se tornar um comediante de stand up, formato de espetáculo que está crescendo na época em que a história se passa, o fim dos anos 70 e início dos 80. Porém, até mesmo (ou especialmente) sua mãe duvida de sua capacidade de fazer os outros rirem, já que além de seus problemas ‘psicossociais’, ele tende a ser depressivo.

Para tornar tudo ainda pior, Arthur vive em Gotham, uma cidade afundada em podridão, literal e metafórica. Uma infestação de ratos é noticiada incessantemente no rádio e na tv. A corrupção assola em todos os segmentos. A violência é grande. Todo esse ambiente, só faz Arthur se sentir cada vez mais rejeitado por tudo e por todos.

Sua mãe, que talvez pudesse ser sua motivação para qualquer perspetiva que ele pudesse ter, acaba contribuindo para sua auto-piedade. Ela passa o tempo todo assistindo TV e sonhando que um dia Thomas Wayne, para quem trabalhou por muitos anos, possa retornar suas cartas, as quais ela escreve frequentemente, pedindo ajuda financeira. Em sua ilusão, ela acaba negligenciando o filho, que apesar de um homem de certa idade, talvez uns 30 e poucos ou até mais, ainda precisa de seu afeto. Até mesmo porque, dada sua condição, não consegue se relacionar com qualquer outra pessoa.

Por tudo isso, e muito mais que só é possível sentir assistindo ao filme e que graças à primorosa entrega de Joaquin, ficando impossível transcrever, lá pelos 20 minutos de filme você já está do lado do protagonista. Você entende a razão de ele ser como é sente uma mistura de pena, com empatia e um pouco de repulsa e uma certa dose de culpa.

As coisas começam a descambar quando após uma série de infortúnios (por assim dizer) e de mal entendidos, Arthur que havia passado a andar armado por recomendação de um colega palhaço, dando-lhe uma arma para se defender de bullies, acaba deixando a arma cair durante uma apresentação em um hospital para crianças. Ele perde o emprego e sua vida que já era terrível se torna simplesmente existência, a qual ele sequer acredita que o seja, pois se considera invisível.

Além disso, as sessões de terapia que fazia (e que já não lhe ajudava, apenas servia para que conseguisse os remédios que controlavam seu comportamento) foram suspensas. O governo havia parado de financiar o programa. Dessa forma, ele parava de ter a já precária assistência que o permitia estar menos perigoso para si mesmo e para a sociedade.

Em um momento, ele conhece uma vizinha após um breve momento no elevador. Acreditamos por bastante tempo no filme que essa seria um interesse romântico até clichê que poderia o ajudar a manter o pouco de humanidade sã que poderia haver nele. Contudo, mais a frente descobrimos em um plot twist que toda sua relação com ela era apenas fruto de suas alucinações. Então, mais um ponto para o roteiro aqui. Apesar de ser uma possibilidade real dada a condição do personagem, em nenhum momento há sequer uma pista disso. Quando a bomba é largada o impacto é real.

Da mesma forma, um outro plot twist que parecia previsível, acaba se tornando uma daquelas dúvidas boas que os roteiristas deixam no ar. Arthur intercepta uma das cartas que sua mãe escrevera para Thomas Wayne. Ao lê-la, ele descobre que é filho do bilionário e mais influente cidadão de Gotham, que atualmente é candidato a prefeito. Isso explica muito da devoção de sua mãe ao ex-patrão e seus pedidos de ajuda a ele.

Thomas haveria expulso Penny de sua casa e encoberto sua gravidez para que isso não trouxesse repercussões negativas para sua reputação. Penny nunca aceitou isso e acabou sendo internada em uma instituição para doentes mentais. Enquanto isso Arthur sofria abusos e violência física. Isso teria causado parte de suas questões.

Entretanto, o filme não deixa claro se realmente Arthur era ou não filho bastardo e violentado de Thomas. Após ir tirar satisfações com o bilionário em sua mansão, ele acaba conhecendo o filho do figurão, Bruce. E acaba se encantando com o menino, que ele acreditava ser seu meio irmão. Porém, o mordomo Alfred acha que ele estava tentando algo perigoso com o menino e acaba o expulsando quando descobre quem é, o escorraçando dali.

Tomado por raiva, ele acaba procurando Thomas em um evento e confronta, levando uma surra e sendo mais uma vez tratado como lixo. O bilionário deixa claro para Arthur que ele não é seu filho e é fruto da loucura de sua mãe, que na verdade nem mesmo é sua mãe biológica. O teria adotado para criar essa história toda.

A partir daí, e por mais que isso possa soar improvável, tudo vai ladeira abaixo. Arthur perde toda o pouco de sanidade que lhe resta e se torna pura violência, devolvendo à sociedade todo sofrimento e dor que ela sempre fez questão de lhe empurrar.

Ele acaba sufocando a própria mãe após essa ter um ataque cardíaco, que por sua vez, se deu quando a polícia foi à procura de Arthur em sua casa. Ele era suspeito de matar três funcionários das Indústrias Wayne no metrô. Acontece que ele realmente os matou ao reagir com tiros à agressão que sofria quando tentou ajudar uma mulher que estava sendo assediada pelos homens no metrô.

A grande população pobre começa a tratar o tal palhaço suspeito de assassinar os escrotos riquinhos capachos dos Wayne como herói da classe operária. Isso infla o ego de Arthur, que finalmente se descobre. Ele agora sabia que existia e tinha um propósito. Ele acaba causando uma espécie de revolução na cidade, que está cansada do abismo social e de toda sujeira que só cria cada vez mais criminosos na cidade, sejam eles de colarinho branco ou aqueles que acabam se deixando levar por não enxergarem saída em uma sociedade que os massacra. Arthur havia, sem querer, inspirado outros como ele, mesmo que todos eles o tenham levado àquela situação.

Em meio a esse caos, o último terço do filme ganha outros ares. Passa a ter mais ação e um ritmo mais intenso. Mas nem por isso o drama fica menor. Pelo contrário. Aqui fica muito mais evidente a gigantesca influência de Martin Scorcese no estilo que Todd Phillips traz para esta produção. Os momentos inesperados, as mortes brutais e completamente contextualizadas, a apoteose dos personagens.

Uma peça essencial nesse quebra-cabeças que é essa nova história do Coringa, é Murray Franklin (Robert de Niro). Antes um ídolo para Arthur, acaba se tornando fundamental para que ele se torne o Coringa, alcunha que o próprio Murray acaba dando ao personagem sem querer. Aliás, aqui fica uma obervação: essa piada se perde totalmente na tradução, já que Murray brinca que Arthur é um piadista (joker em inglês) ao ver sua fracassada apresentação de stand up. Contudo, quando traduzido ele diz que Arthur é um coringa (?!?).

No fim, ele acaba matando seu desafeto em rede nacional, ao vivo, após ter sido convidado ao seu programa para ser humilhado. Ali, o personagem que cresceu brilhantemente durante os cerca de 100 minutos de filme até então, surpreende a todos com respostas contundentes e perturbantes, finalizando com um tiro na testa do apresentador/comediante.

Ao ser preso, a revolução dos palhaços já estava causando caos nas ruas, e a classe trabalhadora já estava determinada a acolher seu ícone e derrubar os símbolos da classe opressora, entre eles, Thomas Wayne. Quando ele sai do teatro com sua família, é assassinado juntamente com sua esposa e em frente ao seu filho por um ativista mascarado que diz que agora ele terá o que merece, claramente inspirado pelo Coringa na tv.

Entre outras mudanças no cânone dos personagens envolvidos, duas causam mais impacto: a possível relação de meio irmãos entre o Coringa e Batman e ele é queridinho do povão, quase um anti-herói. Além disso, não tem poço de material tóxico/ácido, o Coringa é muito mais velho que o Batman, ele tem diversas questões psicológicas mais pé no chão, ele não prima pela inteligência (não que seja burro, mas não seria, ainda, páreo para o maior detetive de seu mundo) e não é um agente do caos. Thomas Wayne é o vilão.

Os fãs do Batman são alguns do mais chatos e exigentes. Entretanto, mesmo com mudanças significativas nos personagens que eles tanto veneram, e mais do que isso, com a sombra monstruosa de Heath Ledger, Joaquin Phoenix e Todd Phillips certamente conseguirão a façanha de agradar a todos, ou pelo menos a maioria esmagadora.

O tom está perfeito. As mensagens são consistentes. Mais do que isso: são importantes. Esse pode ser um dos pontos mais importantes nessa reinvenção do gênero: falar o que precisa ser falado de forma mais clara, mais impactante, ainda que doa em todos, quem assiste, quem produz, quem atua.

Isso pode ser um outro ponto que venha a incomodar. Nos tempos em que vivemos onde política virou torcida organizada, falar sobre luta de classes e colocar os pobres derrotando os ricos pode ser chamado coisa de comunista. Que ninguém diga a estes que reclamarem disso, que o outro Coringa tão idolatrado era um anarquista declarado.

Fazer o público se preocupar com e olhar para os excluídos da sociedade, os ignorados, os doentes. Sentir asco e culpa. Trafegar na linha tênue e perigosa que sempre é traçada quando o protagonista de um filme é um vilão. Fazer você entendê-lo e conseguir fazer você entender que é errado o que ele faz. O filme acerta em todos esses pontos.

Coringa, Joaquin Phoenix, Todd Phillips e toda equipe merecem todos os prêmios e devem ser aclamados por ainda muito tempo. É o filme perfeito para se usar o clichê ‘já nasceu clássico’.

Se você gosta de cinema, se você gosta de filmes de super-heróis, se você não gosta de filmes de super-heróis, se você gosta da estética de Martin Scorcese, se você quer fazer parte do hype e ajudar a consagrar uma obra-prima, vá ao cinema e assista Coringa.

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