Demolidor e a sua liberdade autoral
Os holofotes estão sobre a Cozinha do Inferno com o estrondoso sucesso da série do Demolidor na Netflix, e com a série dos Defensores chegando logo mais, é fácil ser fã do herói hoje em dia, mas quem acompanha suas histórias nos quadrinhos de longa data sempre teve uma ótima experiência.
Mesmo sendo considerado herói de segundo escalão, que por diversas vezes esteve à beira do cancelamento, o herói sempre proporcionou ao seu escritor uma imensa liberdade autoral, permitindo-o fazer o que bem entende em suas histórias, fato que quase sempre rendeu grandes clássicos para o personagem. Maior detentor de prêmios Eisner na Marvel, o Demolidor sempre foi uma mão cheia para quem tomava conta de seu quadrinho.
Um dos grandes responsáveis é Frank Miller, que enriqueceu a mitologia do personagem adicionando elementos orientais como treinamento ninja, criação de personagens como Stick e Elektra, elevou a importância de vilões como o Mercenário e Rei do Crime, estabelecendo o terreno para grandes autores e histórias depois, como o cineasta Kevin Smith com o Demônio da Guarda, a arrebatadora fase vencedora de Eisner de Brian Michael Bendis e a mais leve e descontraída, do também vencedor de prêmio Eisner, Mark Waid.
Frank Miller “ressuscitou” o personagem, impedindo o iminente cancelamento. Foi dada a ele a responsabilidade de uma última tentativa, sem muitas pretensões. A editora deu o crédito para um promissor desenhista na época, de não apenas ilustrar, mas também escrever suas idéias para o demônio destemido, sem muita esperança de sucesso, e assim, “sem querer”, a editora acertou em cheio. A revista além de sobreviver ao cancelamento, se tornou a maior venda da editora e mudou sua periodicidade de bimestral para mensal.
A grande inspiração da série da Netflix é claramente a fase de Miller, com algumas poucas referências à fase de Bendis. A fase Miller é adaptada para a televisão, o uniforme preto é o mesmo utilizado na série “O homem sem medo“, na origem escrita por Miller e desenhada pelo John Romita Jr., personagens como Stick e a organização Casto também são criados nesta fase. Miller criou uma das melhores personagens femininas da indústria dos quadrinhos, a Elektra, que virou febre entre os fãs, a fria e sexy assassina, ex namorada e eterna paixão do protagonista do quadrinho era motivo para muitos fãs acompanharem – o que rendeu até cartas ameaçadoras para o autor quando a assassinou em uma das edições.
Em 1986 o autor presenteia a indústria dos quadrinhos com “A queda de Murdock“. A história mais uma vez se traz uma ideologia além de seu tempo, abordando temas como prostituição, pornografia, vício em drogas, religião, e utilizando todos estes temas com uma personagem extremamente importante para o cânone do herói, a ex-namorada e secretária de Matt Murdock, Karen Page.
Tamanha ousadia do escritor em desconstruir uma personagem que surgiu junto com o próprio Demolidor, em sua primeira edição, uma personagem do cânone do herói. E não para por aí, a personagem vende a identidade secreta de seu amado por um pico de heroína, informação que chega nas mãos do seu grande vilão, o Rei do Crime, que destrói a vida do Demolidor em seu estado mais frágil, o de Matt Murdock. A vida social, profissional e amorosa de Matt Murdock é virada do avesso em uma das maiores, e a mensagem que se apreende após a leitura da saga é a mais bonita. Toda a trama é conduzida de forma com que os leitores sintam desejo de vingança, que Karen seja morta ou presa, que Matt vá atrás do Rei e o espanque, atravesse a linha que separa vigilantes de super-heróis e mate seu arqui-rival, mas isso não acontece. A história acaba com uma das maiores mensagens bíblicas e humanas que se pode ter, a do perdão, Matt perdoa sua ex-namorada Karen Page, e a salva de todos seus problemas.
Após esta breve passagem de grande sucesso de Frank Miller, o querido Demolidor passou novamente por maus bocados, com ressalva para a fase de Noccenti e o jovem Romita Jr, o Demônio da cozinha do inferno não teve histórias memoráveis por um tempo, até que nos anos 2000, a HQ, junto com a editora, passou por uma reformulação, criando o selo Marvel Knights, apostando em jovens talentos, como o promissor cineasta Kevin Smith, e em Joe Quesada.
Smith e Quesada cometeram apenas um erro, prometeram uma nova “Queda de Murdock“, e não entregaram tamanha obra de arte, mas uma grande trama envolvendo temas como religião, AIDS e profundos problemas psicológicos, trazendo um vilão de segunda, de uma galeria de vilões de outro super-herói, com o Mistério como vilão principal e Karen Page novamente para “infernizar” a vida de seu amor. Karen volta com AIDS, deixando Matt preocupado com sua própria saúde e a de Karen, ao mesmo tempo em que tem que cuidar de uma criança que foi deixada em seu escritório, que supostamente seria o anti-cristo, afetando todo seu lado religioso, católico. Drama que não dura muito, pois o vilão Mercenário volta apenas para matar outro grande amor do herói.
A história é boa, mas não entrega o que promete, contudo é importante lembrar que na época assuntos como religião e AIDS eram, e ainda são, assuntos que chocam, sendo tabus difíceis de serem quebrados, assim mais uma vez a HQ do Demolidor serve de vanguarda para assuntos delicados.
Outra passagem que merece grande destaque é a de Brian Michael Bendis e do gênio Alex Maleev, a passagem que revelou ao mundo a identidade de Matt Murdock como Demolidor. O trunfo de Bendis não era as incríveis cenas de ação, mas os diálogos que te mergulham na história como se fosse uma série de televisão, ou um filme envolvente, diálogos que somente Brian Michael Bendis sabe escrever, combinando perfeitamente com a arte de Maleev, sua arte suja e realista que retrata a cozinha do inferno e seus personagens de uma forma única e belíssima.
Recentemente no Brasil foi publicada na íntegra, no interessantíssimo formato de encadernados trimestrais, a fase do premiado Mark Waid à frente do Demolidor. Mark foi ousado, não em matar algum personagem importante, ou em promover alguma mudança drástica na vida do herói, mas sim na sutileza. Mark vai contra a maré que as recentes fases do Demolidor estavam sendo levadas e para de beber da fonte de Frank Miller, ressuscitando o humor do personagem. Histórias leves que remetem ao humor dos quadrinhos em sua era de ouro, sem desrespeitar a inteligência do leitor, com incríveis desenhos de Paolo Rivera e Chris Samnee, que inovam na utilização de onomatopéias e na representação da “visão” do Matt Murdock.
Demolidor é dos grandes personagens da Marvel, que cresceu de uma maneira autêntica, teve a sorte de ser escrito por grandes nomes do ramo e ganhou os holofotes primeiramente pelos seus quadrinhos, alguns merecidamente premiados e lembrados até hoje. Um grande exemplo que a liberdade autoral é extremamente benéfica para a construção de qualquer personagem e para o trabalho de qualquer autor.