Contos | Arrivederci Franz – Anderson Farias

Franz estava decidido a tirar a própria vida. Sequer esperou a vinda do conhecido tédio de domingo para, às três horas da manhã de sábado, descer pela proteção do Mirante do Tanguá e contemplar o abismo. Lembrou-se então da máxima nietzscheana: “Quando se olha muito tempo um abismo, o abismo olha para você”. Conduziu sua visão para o apagado lago abaixo e percebeu, no campo do parque iluminado pelos postes, uma silhueta humana olhando de volta. Será que era o abismo em pessoa olhando para ele? Será que aquela era a única testemunha da agonia do homem cansado de existir?
O vento cortava seu flanco direito, a ponto de fazê-lo pender para o lado de quando em quando. As luzes do Jardim Iracema, onde nascera e crescera, não significavam mais nada para Franz. Curitiba, sua cidade outrora amada, tampouco. Encarar o abismo, como se encarava o fim de uma longa e dolorosa vida, era a sua última luta. E ele, numa frialdade heroica ou covarde, avançou com o pé direito para o vácuo à frente. Com o pé direito decidiu sair da vida.
Caiu livremente e sentiu o frio da queda ser mais intenso do que a frieza com a qual se conduziu rumo a uma morte que parecia ser mais quente. Deparou-se de repente com a face daquele que o observava lá de baixo, um homem de face neutra como um manequim e olhos apagados como vidro.
Franz arregalou os olhos quando se viu em pleno campo do parque, iluminado pelos postes que afastavam a atmosfera noturna. Virou-se para ver o abismo do qual tinha se jogado, mas estava são e salvo.
— Estás a salvo, por ora, para que eu te faça uma pergunta — disse o homem a Franz, com voz tênue e limpa. — A resposta para isso dependerá da pergunta que eu fizer a ti…
— Quem é você? Como eu parei aqui?
— Responda-me e, com resposta certa, terá o que quiseres: ainda desejas a felicidade?

— Sim, desejo… — Mas Franz, confuso, continuou com as perguntas. Assim que veio a calma, decidiu ouvir o homem parado em meio ao campo.
— Da vida que viveste, o quanto te dedicaras à felicidade dos outros?
— Por que diabos está me fazendo essas perguntas? — indagou Franz, volta e meia olhando para o Mirante.
— Sou tuas dúvidas. Respondas a pergunta e prosseguirás.
— Não sei o quanto me dediquei à felicidade dos outros…
— Então por que esperaste da vida felicidade?
— As pessoas esperam muitas coisas da vida…
Franz tentou voltar para o seu abismo, mas suas pernas não reagiram. A face do homem, então, revelou-se sinistra, e começou a mudar, como se máscaras sobrepostas dessem lugar umas às outras. As figuras eram pessoas conhecidas por Franz: seus pais falecidos, seu único irmão distante, seu grande amor da juventude, sua amiga que morrera precocemente, aquele falso amigo que lhe arrancara quase tudo de bom… Então o ímpeto perante a morte mudou, como se quisesse tampar o rosto e deixar de ver os fantasmas do passado na feição daquele homem.
Umas conhecidas e outras nem tanto, as faces presas à memória de Franz continuaram a passar no rosto do homem, até que veio a face do Fim, a última conhecida pelo suicida: a lâmina de água sobre a qual iria cair, escurecida de tal modo que os traços formavam o rosto neutro e sereno daquele com quem falava.
— Responda-me: o quanto dedicaras à felicidade dos entes que viu? — disse o homem das tantas faces do passado.
— Nada… Em nada me dediquei… — disse Franz após uma pausa, quase chorando desesperado.
— Ainda anseias a felicidade?
Franz olhou para o céu e viu os pequenos pontos que, se não fosse a luminosidade laranja da capital acortinando a imensidão do espaço, seriam perfeitas estrelas flutuando no véu da noite.
— Não adianta… mais. Eu não sou responsável por isso. Não sou… Eles me inspiraram isso.
— Queres ver, com teus olhos prestes a serem devorados pelo pó, a culpa que alguns deles levam para o Juízo?
— Sim.

Como se uma bomba tivesse varrido Curitiba com chamas e fuligem, todo o entorno se incendiou no menor dos gestos do homem cheio de faces. As estrelas se revelaram vermelhas, como buracos em chamas para um inferno sideral. As gramas do campo ficaram eriçadas e duras como espinhos, e um mar de fogo cobriu o que até então era o lago do Tanguá. O cheiro de fuligem e o calor tornaram rapidamente a elegante roupa de inverno de Franz em tiras que flutuavam ao redor do seu dorso. Mas ele não se queimou com as chamas que subiam desde o chão tal qual águas de um mar revolto contra a costa.
— Eis aqui as almas que sofrerão por toda a eternidade, em procissão de dor e agonia inesgotáveis — disse o homem, cuja silhueta deu lugar a uma mancha sombria e coberta por espinhos finos como agulhas. Os olhos eram duas esferas brancas, não tão brilhosas, e a boca e o nariz não podiam ser vistos. — Aqui estão aqueles que por tua vida passaram e arruinaram-na. Eles pagam o custo da tua infelicidade. Teu pai, aquele preso às amarras na superfície das chamas, a todo instante pede perdão pelo que fizera ao teu corpinho infante e indefeso… Ele paga o custo.
Franz viu, entre duas manchas escuras e de superfície ouriçada, o seu velho pai, agonizando com as entranhas saltando do ventre. Como o ancião estava preso a uma trave, as vísceras pendiam para os lados, como um velho relógio de cuco. O pai molestador, no entanto, não podia ver o filho, que sobre a ponta de lança da morte voltava a vê-lo, mas numa condição de eterno sofrimento.
— Ali, tua mãe, tão bondosa e caridosa — disse a sombra espinhosa apontando para a direita. — Ela, cristã sem pecado com os outros, mas pecadora nos limites da própria casa, agora paga o custo da tua infelicidade.
— Mamãe? Oh, não! Minha mãe! — Franz só percebeu ali que aquele era o lugar para o qual almas eram jogadas para o eterno sofrimento, o Inferno. Chorou ao ver sua mãe na dor e agonia eternas. — Não! Que ela faz aqui? Ela viveu para a caridade e anulação, predicados de uma boa cristã, e ajudou aos necessitados! Ela nos ensinou a vida de retidão, educação e empatia!
A velha senhora borbulhava no mar de fogo. Gritava em aflição, sentindo a pele ser torrada enquanto retornava ao estado normal para ser novamente queimada.
— Fechava os olhos aos sadismos do teu pai — disse a sombra —, permitiu a tua infelicidade, agora esta é sua nova moradia.
Franz fechou os olhos e esperou acordar daquele pesadelo. Mas ao abri-los de novo, tornou ver a mãe, desesperada, rogando a Deus e aos santos pelo perdão e pela interseção, mas cuja culpa ainda não existia em sua mente, pois sua dor cotidiana e interminável não a fez parar para imaginar os motivos os quais levaram sua caridosa alma até ali.
A caminhada por sobre as chamas revelou a Franz os sintomas da tristeza ao longo da sua vida morbidamente solitária, em que os outros, e não ele, foram os responsáveis pelo esvaziamento.
Encontrou também, nas chamas do Inferno, seu sábio avô, sua bondosa tia de Maringá, o padre da Paróquia, alguns nomes do passado e aquele a quem chamou de amigo, com quem compartilhou o pão e o vinho, ajudou a sarar dores da vida… Alguém a quem Franz verdadeiramente amou a ponto dele assumir o espaço do irmão que tão cedo se afastara da sua vida. O antigo algoz de Franz estava preso a uma pedra quente pelos pés e mãos, como se estivesse sendo sacrificado incontáveis vezes num ritual pagão, mas sem ver o Fim.
A sombra fez outra pergunta:
— Se soubesses que os responsáveis pelo nível incurável do teu vazio estivessem aqui, nos ardores eternos, terias tirado a própria vida?
— Não sei. Eu…
— Esvaziar-te-ia de toda culpa que não te pertencesse?
— Sim.
— Por que tiraste a própria vida? Depois de tudo o que vê, dizei-me: por que abandonaste a imensidão das coisas possíveis para experimentar isto?
— Não me passou pela cabeça que isto viesse a existir — disse Franz, inócuo, indefeso pelo presente, constrangido pelo passado.
Os edifícios do Centro surgiram em ruínas chamejantes. Das janelas multidões se jogavam inúmeras vezes, em levas seguidas e intermináveis contra o chão. Ressurgiam das janelas e novamente pulavam para as ruas, tornando as calçadas tingidas de sangue vivo e quente. — Não acreditei em Deus durante parte da vida, tampouco na existência do Inferno… Só acreditei no vazio da tristeza porque eu sentia, sabe? Se Deus ou quem quer que seja não me resgatou do vazio, por que eu deveria acredita num pós-morte, mesmo que de dor? Ah, isso não é real… Acho que já estou morto. Isto é o último delírio da minha cabeça, que ainda funciona, e vem se apagando…
A sombra se preencheu com fogo. As rachaduras em sua tez escura foram se abrindo ao ponto de uma entidade chamejante sair de dentro. Seus olhos se abriram enormes e seu corpo inflou-se com ardor. As mãos grandes de fogo avançaram sobre a cabeça de Franz e pressionaram-na, levando-o a gritar e a tentar, com suas próprias mãos, desvencilhar-se daquelas. Queimou-se e gritou, mas perdeu a voz.
— Essa dor é sinal de último delírio?
Marcado pelo fogo, Franz se viu sem forças e suas pernas falharam. Mas continuava vendo multidões se jogando dos prédios e ouvindo berros reverberando por toda a urbe.
Uma das luzes vermelhas do céu ficou branca. Veio à sua direção. Franz se ergueu e flutuou como uma semente de dente-de-leão pela atmosfera quente de fuligem e cinzas. Impregnado pela luz esperançosa, olhou em torno e viu todo o horizonte rubro-negro e morto, queimado. Ele fechou os olhos, e quando voltou a abri-los, viu uma face coberta por uma máscara cirúrgica. Por vezes os raios de uma luminária eram tapados.
— Vamos lá, fique conosco! — disse aquele a quem a face pertencia.
Recobrou a consciência plena poucos dias depois. Mas sua maior surpresa não foi ter voltado do Inferno e ter acordado na UTI da Santa Casa; foi ter visto o homem de face neutra indo vê-lo apenas à distância.
Meses depois, Franz soube que aquele homem em questão o salvara do lago do Parque Tanguá, sobre o qual ele havia se lançado num não-tão último ato contra a vida.

Pedro Cardoso

Editor do Capacitor, apaixonado por games, filmes e literatura sci-fi/fantástica.

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