Contos | A morte segundo a Luxuria – Tiago Silva

Um copo de Bourbon, 12 anos quebrado ao lado do pé da mesa de centro com tampo de cristal, com um resto de bebida dividindo seu espaço entre os cacos do que sobrou do copo e um pedaço do carpete persa. Embaixo da mesma mesa, o aparelho de telefone fixo, cujo acabamento dourado era contrastado com o vermelho das manchas de sangue coagulado espalhadas por ele, um sapato de couro preto virado com a sola pra cima e alguns cacos de cristal, espalhados no momento do choque da sua cabeça contra a mesa. Uma poça com seu próprio sangue. Seu armário com troféus de caça e peças raras, ladeado por suportes de parece que acomodavam as armas usadas durante as competições nas quais os prêmios foram adquiridos.
Ao fim do cômodo, a porta em formato de arco que contemplava a divisão entre sua sala de estar e seu escritório e nele, do lado esquerdo, contrário à porta de entrada, segundo sua visão, um vulto de sobretudo se aproxima, o estalar dos passos no assoalho, causados pela ponta do salto escarlate ainda que à passos firmes, cuidadosos, sendo completamente abafados assim que a figura alcançou a soleira da sala, alcançando o piso coberto pelo mesmo carpete no qual sua cabeça estava repousada. Ela se aproxima pernas torneadas, panturrilhas volumosas e a pele nitidamente caucasiana por baixo das meias calças negras, visíveis até os joelhos, onde começava o sobretudo, preto, fechado, espesso, mas que ainda assim resguardava sutilmente as curvas do corpo da figura até onde a vista permitia ver. A figura se aproxima e para há alguns passos do rosto no chão, suspira fundo, como se a situação fosse irritante de alguma forma e segue atravessando a sala, passando a perna com cautela pelos obstáculos para não encostar em nada e alterar acidentalmente, antes de sumir do angulo de visão.
O cenário descrito seria aquele vislumbrado pela ótica de William B. Stooge, caso o mesmo não estivesse morto e seu corpo jazesse em meio à considerável bagunça da cena do crime. A figura que visita e inspeciona o local devidamente calçada com luvas de couro, não foi a responsável pelo ato, tampouco tinha alguma relação direta com a vítima, mas de alguma forma a situação lhe irritava. Alguém ter consumado toda aquela situação, ainda mais por que, segundo constava, poucas pessoas teriam motivos reais para seguir com o crime. Ao menos o fato do sistema interno de monitoramento ter sido desativado, permitia a visita sem maiores riscos pra checar o modus operandi do assassino. Cinco tiros pelas costas e não houve contato visual com o atacante. A vítima estava, retirando os sapatos, depois de ter preparado o que seria a primeira das diversas doses da noite. Entre o primeiro e o terceiro, o copo cai da mão, uma tentativa de usar o telefone, o sapato já retirado vai parar embaixo da mesa com um tropeço. Ao fraquejar lá pelo quarto disparo, o corpo desabou, com a testa batendo na extremidade da mesa de cristal e o corte sangrando justificava os cacos, a poça de sangue no telefone. O último disparo, certeiro, à queima roupa talvez tenha sido o que ratificou a morte.
A visita se encaminhou para a saída deixando a sala escura e voltando ao escritório, iluminado somente por uma luminária de parede, ao lado do espelho gigantesco na mesma parece da entrada para a sala de estar. Um rosco de traços delicados e ao mesmo tempo fortes, ladeado por cabelos vermelhos, lisos longos, olhos languidos, verdes, penetrantes encarando seu reflexo no espero, checando a aparência e o batom delineando os lábios carnudos, com uma argola dando o toque final de cobiça a aquela aparência impecável.
Saiu pela porta dos fundos da cozinha, seguindo pelo corredor dos fundos da casa checando a movimentação da rua. Vazia. Nenhum carro estacionado nas proximidades.
Definitivamente, seja quem for que acabou com a vida do Sr. Stooge, não poderia ter escolhido momento mais propício. Se ela não estivesse à espreita da vítima, por seus próprios motivos, só saberia do crime pela manhã, quando o fato se tornasse do conhecimento de todos.
Porém, por mais que tenha se antecipado e a diferença de tempo fosse aparentemente mínima, não conseguiu se deparar com o possível responsável. Ao menos o assassino havia sido cuidadoso e eximiamente concebeu o ato sem deixar uma prova aparente, ao menos não para olhos que, apesar de não serem profissionais, são mais experimentados em desvendar detalhes que a maioria das pessoas que se deparassem com a mesma cena.
– Sinceramente, não sei o que é pior – Pensou consigo mesma – Não saber quem poderia ter feito isso ou alguém ter feito isso antes de mim. Ao menos a situação chegou ao mesmo fim, mesmo que ainda reste esta pulga atrás da orelha.
Caminhou por cerca de duas quadras até a vaga próxima à quadra de basquete na qual havia estacionado seu carro. Avistou o modelo que dificilmente seria atribuído à uma mulher, a não ser que ela tivesse uma personalidade forte o que, definitivamente, era o caso.
Como regra de retorno, pegou a rota mais longa para casa, levando o dobro de tempo no caminho porém ainda chegando antes que a seu bairro acordasse. Estacionou o carro, certificou-se de que a garagem estava trancada e retirou as luvas enquanto subia o lance curto de escadas até a porta da varanda dos fundos. Entrou pela cozinha, tirando o sobretudo e pendurando-o no Mancebo. Subiu pela escada em caracol à direita em direção ao quarto e passando pelo espelho, repousou as luvas na mesa de cabeceira e voltou-se para a penteadeira, tirando os brincos e pegando um lenço, começando à remover a maquiagem.
Dando um passo para trás, sentou na beirada da cama soltando longamente a respiração, repassando os últimos momentos, retrocendendo até alguns meses quando se propôs à engajar-se nesta empreitada. O que fazia, fora dos autos da sua profissão não deixava de ser um complemento da mesma. Era uma extensão do que fazia durante as sessões em seu consultório no qual prestava auxílio psicológico à diversos pacientes, entre eles, mulheres que haviam sofrido algum tipo de trauma em virtude de abusos de parceiros, parentes, estranhos. Aqueles que passavam impunes não eram dignos de seguir sem pagar pelo mal causado, algumas vezes, de forma irreversível, transformando a mente e a vida daquelas mulheres. Algumas delas, haviam tentado a paz através da entrega da própria vida e poucas ainda, haviam chegado ao extremo de consumar o ato. Aquilo precisava ser evitado e a paz, mesmo que não completamente, devia ser entregue à aqueles espíritos antes que nada mais pudesse ser feito. Era isso que ela fazia, levantava informações, construia fatos, usava suas influências para traçar um perfil, um código, ajudava suas confidentes e pacientes à se livrar de seus fantasmas, seja apagando-os da mente, transformando os traumas em superações ou certificando-se de que, pessoalmente, não poderiam causar mais nenhum mal. À ninguém.
Esticou a cabeça para o lado direito, como que procurando aliviar a tensão, fez o mesmo com o lado esquerdo enquanto terminava de despir-se, jogando o lenço na lixeira.
Colocou seu disco de tango predileto em sua vitrola de estimação, símbolo do seu hobby por coisas clássicas e dirigiu-se até o banheiro de sua suíte. Ligou o chuveiro e aguardou o mormaço da água quente preencher o banheiro enquanto dava alguns tímidos passos, como se alguém pudesse ver aquele momento de total entrega à sí mesma, fugindo do mundo exterior. Tomou um banho demorado, secou-se e colocou um robe. Enrolou seus cabelos ruivos em uma toalha e desceu à cozinha novamente. Uma taça. Uma garrafa de vinho. De volta ao quarto, sentou-se na poltrona do lado oposto da sua cama, recostou os pés no apoio que fazia par com a poltrona. Enfestou a alma de tango e o corpo de vinho e ali permaneceu por alguns longos minutos, repassando sua agenda para o dia seguinte. Era dia de seu paciente mais intrigante. só o via uma vez por mês pois, segundo uma convenção dos dois, apenas o necessário. Não era nem mesmo um tratamento, era uma conversa informal, quase que uma amizade. Aquela figura alta, de cabelos longos que parecia analisá-la em cada visita ao passo em que ela mesma tentava desvendar quais as reais intenções daquele paciente. Não havia um mínimo sinal de distúrbio, de solidão, de carência. Nada. Parecia que era completamente à parte do mundo, diferente dos demais. Parecia que ele estava ali por um propósito maior. Um propósito que a psicóloga não fazia ideia, mas que estava poderia encontrar algum sentido. Um dia.
Conto escrito pelo Tiago Silva.
– Caso queira seu conto publicado aqui, basta enviá-lo para contato@ocapacitordefluxos.com

Pedro Cardoso

Editor do Capacitor, apaixonado por games, filmes e literatura sci-fi/fantástica.

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